Karoline Vital
Karoline Vital | karolinevital@gmail.com

Esse silêncio deu lugar a cristalização de uma cultura em que a execução da virilidade masculina diante da mulher não possui limites claros. E o conceito do que é violência também parece não estar muito bem definido.
Após a escola, entrei no ônibus, encostei a cabeça na janela e fiquei olhando a rua. Um ponto à frente, um homem já chegou perguntando onde estava a minha mãe e se sentou ao meu lado. Ele usava um broche de plano de saúde preso e, como minha mãe trabalhava em dois hospitais, deduzi que deveria ser algum conhecido dela.
Como eu estava usando o uniforme da escola, ele começou a me fazer perguntas sobre qual série eu cursava, se estava indo bem nos estudos e pediu o número do meu telefone. Eu dei, afinal, como ele perguntou por minha mãe, deveria querer falar com ela. Depois, quis saber se eu estava namorando e se meus pais me deixavam namorar. Comecei a achar o rumo da conversa meio esquisito. Então, ele disse que eu era muito bonita e poderia namorar escondido.
Os galanteios que ele me fazia não soavam como elogios. Ao invés de me enaltecer, eu ficava ainda mais constrangida. Então, foi a vez de eu perguntar ao estranho de onde ele conhecia minha mãe. Ele me perguntou o nome dela e respondeu que não a conhecia. Só aí eu me toquei que ele estava me assediando, puramente.  O homem me deu seu cartão e desceu alguns pontos antes do meu.
Apavorada e já em casa, passei logo a ocorrência à minha mãe. Ela me perguntou se ele tinha me tocado e eu respondi que não. Entreguei-lhe o cartão e informei que tinha dado o meu nome e telefone a ele, pensando que se tratava de algum conhecido dela. Fiquei sem saber o que fazer para passar o medo de ele acabar me perseguindo e sabe-se lá podendo fazer o que comigo.
Minha mãe também não sabia como resolver a situação, como garantir minha segurança. Apenas ligou para o “conquistador” e pediu que nunca me procurasse. Ao questionar a diferença de idade, já que ele tinha 32 anos e eu 14, ele respondeu que não pôde resistir à minha beleza e que só me fez elogios, nada “sério”.
Realmente, ele não cometeu crime algum. Não me tocou, não me forçou a fazer nada. Só que o que ele viu como galanteio, não me deixou lisonjeada. Soou como uma ameaça, fez com que eu andasse com medo de ser ainda mais violentada por semanas. Afinal, quando ele se aproximou de mim, eu nem o tinha visto. Qual direito ele tinha de achar que o terreno estava aberto para “investidas”?
Essa “impulsividade” masculina, de não frear seus desejos e instintos, de mostrar que sempre está “pronto para o ataque” pode soar como sinônimo de status social entre os machos. Mas, entre as mulheres, é uma desvalorização e até uma forma de estupro. Mas o que seria estupro? Só a penetração forçada? Para a mulher, sua intimidade e dignidade são violadas a partir de quando é tratada como um pedaço de carne com orifícios recreativos.
O constrangimento e o medo de uma reação ainda mais violenta são expressos com o silêncio. E esse silêncio deu lugar a cristalização de uma cultura em que a execução da virilidade masculina diante da mulher não possui limites claros. E o conceito do que é violência também parece não estar muito bem definido.
Na era da informação e do conhecimento, já passou da hora de os homens aprenderem a não serem estupradores. A cada 12 segundos, uma mulher é estuprada no Brasil. São números oficiais, dos crimes concretizados e denunciados. Os feitos em silêncio, não estão incluídos na soma. É preciso discutir o assunto abertamente, de maneira franca e racional, pois enquanto o silêncio durar, a cultura do estupro será ainda mais fortalecida e o número de vítimas não tenderá a baixar.
Karoline Vital é jornalista.